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O construtor da escola portuguesa de Órgão

O Professor SIbertin-Blanc foi, sem dúvida, a personalidade mais estruturante da vida organística portuguesa no séc. XX. Parisiense de nascimento, diplomou-se em Órgão e Improvisação sob a orientação de Edouard Souberbielle na Escola César Franck, onde obteve também os diplomas de Direção coral, Canto Gregoriano, Piano e Composição. Estudou ainda com Maurice Duruflé no Conservatório Nacional Superior da capital francesa. Ocupou lugares de organista e mestre de capela nas igrejas de La Madeleine e Saint-Merry, até que em 1956 partiu para o Luxemburgo como titular do órgão da Igreja de Saint-Joseph. Finalmente, em 1960 aceitou o convite de Júlia d’Almendra, fundadora e diretora do Centro de Estudos Gregorianos (CEG), para se radicar em Lisboa e assumir o cargo de professor nesta primeira escola superior de música sacra em Portugal; exerceu essas funções desde janeiro de 1961 até 2000, ano da sua jubilação: primeiro, no CEG, convertido no Instituto Gregoriano de Lisboa (IGL) em 1976 e, após a reforma do ensino artístico de 1983, na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), onde foi integrado o curso superior de Órgão do IGL. Mas vejamos, antes de mais, o contexto da vida organística portuguesa no séc. XX e da fundação do CEG.

1. O ensino de Órgão na 1.ª metade do séc. XX

A classe de Órgão começou a funcionar quase um século após a fundação do Conservatório (CN). Anunciada na reforma de 1898, a “Aula de Órgão” viria a ser criada em 1901 pelo Decreto de 24 de outubro, na remodelação curricular presidida por Augusto Machado que, para iniciar a lecionação, contratou em 1905[i] um reputado compositor e organista belga – Desiré Paque –, também Mestre da Capela Real e professor do Príncipe D. Luís Filipe. No entanto, depois de quatro anos de ensino de uma disciplina designada mais frequentemente por Acompanhamento, este professor retirou-se sem que ficasse constituída uma classe de Órgão.

Seria após a reforma de 1930 que, na sequência da compra do órgão do salão[ii], se deu início efetivo ao ensino de Órgão, no ano letivo de 1933-34, contratando o prof. Edouard Chambon, também de nacionalidade belga. Dois anos mais tarde, sucedeu-lhe Filipe Rosa de Carvalho, que se manteve no cargo até 1950[iii].

2. Os ventos de mudança nos meados do século.

O projeto de Júlia d’Almendra

Após a saída de Filipe Rosa de Carvalho, o CN faz uma séria aposta na renovação da classe de Órgão e da própria música litúrgica, contratando o jovem organista alemão Karl Heinz Müller, formado pela Escola Superior de Música de Friburgo e pelo Instituto Pontifício de Música Sacra (Roma).

No mesmo ano, regressa de Paris uma das personalidades mais carismáticas da música portuguesa do séc. XX – Júlia d’Almendra – a quem se deve a criação da escola para a qual seria convidado o prof. Sibertin-Blanc. Depois de um primeiro contacto com o canto gregoriano, Júlia d’Almendra ouviria da boca da eminente musicóloga francesa Solange Corbin[iv] uma frase tão perturbadora como determinante para a mudança radical na sua trajetória profissional: “que Portugal nada perderia com uma violinista a menos; mas que o campo da música sacra estava deserto e nele [Júlia d’Almendra] teria uma missão a executar”[v]. Abandonada definitivamente a carreira de violinista, dedicar-se-ia em exclusiva e indefetível dedicação ao ensino, prática e divulgação do canto gregoriano e da música sacra em geral, até ao fim dos seus dias; este espírito de missão está espelhado em vários escritos seus, relativos, tanto à atividade da escola, como, especificamente, ao curso de Órgão[vi].

Após uma aprofundada formação em Paris, coroada com a tese Les Modes Grégoriens dans l'oeuvre de Claude Debussy, Júlia d’Almendra inicia de imediato um amplo movimento gregoriano, particularmente visível nas Semanas de Estudos Gregorianos[vii], em cuja programação se integraram frequentes concertos de órgão por notáveis mestres franceses (Gaston Litaize, Edouard Souberbielle, Jean Guillou, A. Sibertim-Blanc, entre outros) e, a partir de 1972, também cursos deste instrumento. É neste movimento que surge, em 1953, o CEG (um centro de investigação do Instituto de Alta Cultura), com um objetivo claro: formar investigadores e músicos de igreja profissionais – diretores de coro, cantores e organistas. A estes últimos estava destinado um curso superior, o único em Portugal até à criação de cursos de licenciatura nas Universidades de Aveiro e Évora e na Universidade Católica, na década de 90, altura em que também regressaram a Portugal alguns organistas formados no estrangeiro[viii].

O projeto de Júlia d’Almendra – formada no esplendor parisiense da vida organística – assentava numa visão clara sobre o ensino de Órgão e o papel do organista na liturgia e na cultura, na Igreja e na sociedade; neste sentido, a lecionação é indissociável, tanto da presença do organista no culto (acompanhador e solista), como em audições e concertos. Daí, a necessidade de uma sólida e abrangente preparação, tanto  musical, como litúrgica, para que o organista tenha uma ação eficaz dentro e fora da Igreja. Precisamente a propósito de um concerto por A. Sibertin-Blanc (8 de dezembro de 1961), Júlia d’Almendra justifica a presença de professores estrangeiros residentes para esta disciplina: “o contacto com culturas diferentes e com artistas de outros meios é sempre de maior vantagem para o impulso e desenvolvimento de qualquer ramo artístico. Prova-o, mais uma vez, a crescente familiaridade do  público com a literatura e arte do Órgão – de que tão atrasado se encontrava – graças ao movimento gerado pelo CEG com base no seu curso daquele instrumento. Para o ministrar, têm sido convidados professores do país onde as tradições conservam no apogeu a melhor escola de Órgão da atualidade, a França. E assim, em curto prazo, passaram já por Lisboa alguns excelentes organistas que, através das suas lições ou dos seus concertos nos templos, na rádio e na televisão, vêm deixando boas sementes que começam a dar os seus frutos”[ix]. Tinham já lecionado no CEG: Geneviève de la Salle (1955-56), Jean Guillou (1956-58)[x], Claude Terrasse e Germaine Chagnol (1958-59) e Pierre Gazin (1959-60), além da presença frequente de um dos grandes organistas e pedagogos do seu tempo, um homem de cultura, dedicado a Portugal cuja língua falava corretamente – o prof. Edouard Souberbielle.

A importância dada por Júlia d’Almendra ao curso de Órgão está bem demonstrada pela instalação de um órgão de tubos na sua residência[xi].

3. A chegada de Antoine Sibertin-Blanc.

A inauguração de uma década de ouro

Tendo Pierre Gazin sido nomeado professor do Conservatório de Metz, o CEG ficou sem professor durante o 1.º trimestre do ano letivo de 1960-61, até que, em dezembro de 1960 é anunciado que “a convite do CEG, o eminente organista Antoine Sibertin-Blanc [...] dignou-se aceitar o cargo de professor das classes de Solfejo, Harmonia, Órgão, Improvisação e Análise Musical no CEG [...] Excelente concertista, improvisador e professor, A. Sibertin-Blanc será certamente mais um valioso colaborador que muito poderá concorrer para o desenvolvimento da já importante ação do CEG no ressurgimento da música religiosa em Portugal”[xii]. E, após escassos meses de atividade, é feita a sua caraterização: “a vida do CEG retomou novo impulso com a colaboração do distinto organista Antoine Sibertin-Blanc [...] Simpatia, simplicidade, grande compreensão e zelo no ensino, tais são as qualidades que ao primeiro contacto impressionam os seus novos alunos”[xiii]. O seu primeiro concerto em Portugal foi realizado no dia 27 de maio de 1961, no órgão de S. Vicente-de-Fora, cujo restauro fora inaugurado por Jean Guillou em 14 de maio de 1958[xiv].

Até 1966, o CEG dispôs apenas de dois harmónios, um deles com pedaleira. Logo após a fundação do Centro, Júlia d’Almendra, pedira ao Governo um subsídio para a construção de um órgão de tubos, mas sem sucesso. Só naquele ano foi reconstruído um instrumento antigo proveniente de uma igreja do Patriarcado, ao qual Bartolomeo Formentelli acrescentou um 2.º teclado e uma pedaleira. Para o financiar, o prof. Sibertin-Blanc deu um concerto na Sé de Lisboa no dia 1 de Julho “em benefício do restauro do órgão do CEG”[xv]. Apesar da precariedade das condições de lecionação, Sibertin-Blanc imprimiu à sua ação pedagógica um ritmo impressionante, dentro e fora da escola; fundou ainda o Coro Palestrina, que dirigiu em concertos durante vários anos.

3-1. A sua atividade pedagógica.

Os “recitais-audição”

Consideradas como “mais um passo seguro na formação de elementos para a constituição de futuros quadros”[xvi], as audições escolares da classe de Órgão tiveram início em 1957 no fim de cada ano letivo; até 1970 realizaram-se na Igreja de S. Luís dos Franceses e, a partir daí, na Igreja de S. Roque. Com a chegada do prof. Sibertin-Blanc, realizaram-se geralmente também no fim do 1.º semestre e, entre 1969 e 1980, a audição final contou com a participação da classe de Composição do Maestro Frederico de Freitas. O elevado número de alunos permitiu selecionar os melhores, garantindo sempre um considerável nível artístico. Comentando o “recital-audição” de 1 de julho de 1961, a revista CG refere: “faz-nos antever que num futuro não muito distante, o CEG poderá proporcionar ao nosso país e às nossas igrejas organistas devidamente preparados, sob o duplo aspeto técnico e litúrgico, facilitando assim pouco a pouco o desaparecimento da prática que em tal campo se nota nas igrejas paroquiais”[xvii]. Era a primeira de um elevado número de audições, em que seriam apresentadas ao público várias dezenas de organistas, divulgando, simultaneamente, o respetivo repertório.

3.2. A sua atividade artística.

Algumas referências

Extraordinário intérprete e improvisador, Sibertin-Blanc desenvolveu uma incansável atividade em Portugal e no estrangeiro. É impossível encerrar nestas linhas 50 anos de um artista que percorreu Portugal de lés-a-lés como concertista e pedagogo; deixamos aqui apenas um apontamento sobre os acontecimentos mais relevantes de uma verdadeira década de ouro da vida organística portuguesa, a maior parte dos quais contou coma participação do prof. Sibertin-Blanc.

– 1961 – Início da publicação da série Portugaliae Música (editada pela Fundação Gulbenkian, cujo envolvimento foi determinante nesta década), com a publicação das Flores de Música do P. Manuel Rodrigues Coelho, obra à qual Sibertin-Blanc  dedicaria diversos concertos[xviii]. De resto, a música dos nossos compositores mereceu-lhe sempre a melhor atenção, não tivesse sido o seu primeiro concerto em Portugal realizado no emblemático instrumento histórico de S. Vicente-de-Fora. Faria gravações para as etiquetas discográficas Erato, Arion, Columbia, EMI, Polygram e Moviplay. Além disso, ao nosso país dedicou uma das suas composições – a Suite portugaise – por ele estreada na Sé de Lisboa em 28 de março de 1976, num programa inteiramente dedicado à música portuguesa, antiga e moderna.

– 1962 – O instrumento escolhido para o Prémio CN é o órgão; será atribuído à obra de Constança Capdeville Variações sobre o nome de Igor Stravinsky, que seria estreada em 18 de janeiro de 1964 no salão do CN por Gertrud Mersiovsky – então professora da escola – num recital integrado no ciclo Nova Geração.

– 1963 – Também o instrumento escolhido para o Concurso Nacional de Composição Carlos Seixas, organizado pelo Secretariado Nacional da Informação, é o órgão; sairia vencedor Frederico de Freitas com a obra Sonata de Igreja para festejar a noite de Natal, que seria estreada por Sibertin-Blanc num concerto realizado na Sé de Lisboa em 14 de julho de 1968[xix].

– 1964 – Graças ao patrocínio da Fundação Gulbenkian no relançamento da cultura organística portuguesa, é construído pela Casa Flentrop (Holanda) o grande órgão da Sé de Lisboa, de que foi sempre titular A. Sibertin-Blanc (nomeado em 1965)[xx].

– 1965-66 – Para assinalar a inauguração do novo órgão da Sé de Lisboa, é levada a cabo a audição da obra integral de J. S. Bach para órgão, por Sibertin-Blanc, Gertrud Mersiovsky e Rudolf Lind.

Tem início uma série de restauros de órgãos históricos (que se prolongará pela década seguinte), também pela casa Flentrop, vários deles inaugurados por Sibertin-Blanc.

– 1967 – É construído, também pela casa Flentrop, o órgão do grande auditório da Fundação Gulbenkian, que no mesmo ano promove o ciclo “Música Latina para Órgão”, na Sé, pelos organistas A. Sibertin-Blanc, G. Mersiovky e Montserat Torrent.

No CN, Isabel Ferrão, simultaneamente aluna do prof. Sibertin-Blanc no CEG, ganha o prémio CN.

– 1969 – Por encomenda da Fundação Gulbenkian para assinalar a construção do órgão do grande auditório, Frederico de Freitas compõe a Fantasia concertante – a única obra para órgão e orquestra de compositor português no séc. XX –, que seria estreada em 10 de fevereiro de 1971 por Montserrat Torrent e a Orquestra Gulbenkian sob a direção do autor.

Conclusão

A criação e desenvolvimento do curso de Órgão do CEG operou uma autêntica revolução no meio organístico português, graças à passagem por Lisboa de eminentes intérpretes e pedagogos e, sobretudo, graças à presença muito ativa e continuada do Professor do CEG/IGL. Assim, apesar do florescimento da classe de Órgão do CN na década de 50, foi à volta de Sibertin-Blanc que, após a sua chegada a Lisboa, se foi concentrando a esmagadora maioria dos alunos, futuros professores que iriam ocupar os nossos postos de ensino (secundário e superior), bem como dos elementos do clero e congregações religiosas, que tinham ou viriam a ter lugares de responsabilidade nas suas dioceses ou comunidades. Embora alguns tenham completado os estudos noutros países, foi no CEG/IGL que receberam a base e o incentivo da sua formação. Um lugar especial para o saudoso Joaquim Simões da Hora, o discípulo que, ao assumir a regência da classe de Órgão no CN em 1976, deu um passo decisivo na afirmação do repertório organístico português.

A irradiação da ação pedagógica do prof. Sibertin-Blanc foi construindo, pouco a pouco, ao longo de 40 anos, uma classe, uma presença artística, uma nova maneira de atuar na liturgia: numa palavra, a escola portuguesa de Órgão. Assim, contemplando o panorama organístico português, deparamo-nos com uma frondosa árvore genealógica do curso superior de Órgão do CEG/IGL/ESML, cuja sombra se estende pelo país inteiro, através de sucessivas gerações de profissionais, fruto da transição, sem quebra, do curso superior o IGL para a ESML. Além disso, os cursos de licenciatura, criados nas Universidades de Aveiro e Évora, foram implementados e regidos por antigos discípulos do Professor, o mesmo acontecendo atualmente na Escola das Artes da Universidade Católica. 

Francês de nacionalidade, Antoine Sibertin-Blanc foi o mais português dos nossos organistas e Portugal soube manifestar o reconhecimento a este gigante da nossa cultura musical na segunda metade do séc. XX: em 1999 foi agraciado pelo Presidente da República com a comenda da Ordem de S. Tiago da Espada, em cerimónia realizada em Aveiro, no dia de Portugal e das Comunidades.

A grandeza de alma e a inexcedível dedicação à profissão e aos alunos, a disponibilidade e a permanente simpatia não deixaram nunca indiferentes quantos tiveram o privilégio de trabalhar com este insigne Professor. Os organistas portugueses estão de luto com a partida do seu Mestre sábio e dedicado, amigo atento de todas as horas. Mas fica-lhes o conforto, a  certeza e o alento para prosseguirem o caminho aberto pelo labor persistente e infatigável de um homem que lhes provou ser possível escrever novas páginas da história da cultura organística em Portugal.

Domingos Peixoto